A alfabetização é mais do que um marco importante na educação, é a base que abre portas para o conhecimento e a participação ativa na sociedade. Fundamental para o desenvolvimento pessoal e social, ela possibilita o acesso à informação, às culturas, ao mercado de trabalho e ao exercício da cidadania. Mais do que uma habilidade técnica, é um direito básico de todas as pessoas. Talvez a maior prova de que não estamos dando a devida atenção a esse processo e ao que ele demanda esteja no fato de que não conseguimos alcançar, no Brasil, a meta de que todas as nossas crianças estejam alfabetizadas no início da escolarização do Ensino Fundamental.
A diretora executiva da Roda Educativa Patrícia Diaz explora o que está por trás desse debate na aula “Possibilidades para a Alfabetização nas Redes Públicas de Ensino”, on-line e gratuita, que realizou recentemente no minicurso da III Escola de Inverno 2024, da Cátedra Alfredo Bosi de Educação Básica, do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA-USP). Seu foco foram os desafios que são inerentes a essa temática e oportunidades atuais de avanço para o futuro.
“Não dá para pensar método, material, formação de professores e avaliação sem saber qual é o referencial que vamos usar para a nossa meta. Onde vamos chegar nesses primeiros anos do Ensino Fundamental? A alfabetização é um tema controverso e de muitas disputas, com visões que partem de lugares diferentes, muitas vezes, antagônicos. Mas quando a gente desfoca dessas polêmicas e olha para as pessoas que queremos formar e do que se trata essa alfabetização, essa pessoa que se quer alfabetizada atuando na sociedade, a gente consegue alguns consensos e alguns pontos mais firmes para essa discussão”, afirma.
Para Patrícia, a alfabetização não é uma responsabilidade única das/os professoras/es alfabetizadoras/es. Ela destaca que é necessário haver o compromisso das/os demais educadoras/es e toda uma rede de articulações para que sejam asseguradas as condições para que todas as pessoas se alfabetizem. Partindo dessa premissa, a especialista se baseia em quatro pontos principais:
- Quem é a pessoa alfabetizada que queremos para o nosso país?
- Há projetos estruturados de alfabetização nas redes públicas de ensino? Como eles estão alinhados com as avaliações que são realizadas?
- Como está acontecendo o atual Compromisso Nacional Criança Alfabetizada?
- Quais são as possibilidades para pensar o trabalho da gestão educacional na perspectiva da alfabetização nas redes públicas de ensino?
Acompanhe abaixo alguns registros da aula:
Conceito de alfabetização
Patrícia explica que, no decorrer da história, marcos importantes foram definindo ou dando pistas para essa conceituação do que é a alfabetização. “Nós não temos uma definição muito concretizada, no nosso país, até hoje, do que é estar alfabetizado. Foram várias tentativas e a gente tem uma recente, mas ainda é difícil encontrar um documento ou uma sequência de documentos onde essa definição está explicitada e normatizada. Não ter isso na nossa história é uma das brechas para essa disputa entre os métodos ou divergências de concepções ou propostas, o que acaba prejudicando e desfocando do nosso objetivo maior: que é olhar a formação das crianças e o direito que todas elas têm a acessar a cultura e a escrita e todo o protagonismo que elas podem ter no uso dessas práticas.”
Em sua apresentação, ela traz alguns desses marcos e comenta os aspectos mais importantes de cada um: a definição de pessoa alfabetizada no Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) – de 1976 a 1999; os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) – 1997; Indicador de Alfabetismo Funcional (Inaf) – 2001; Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC) – 2012; Base Nacional Comum Curricular (BNCC) – 2017; Programa Mais Alfabetização – MEC 2018; Política Nacional de Alfabetização (PNA) – 2019; e o Compromisso Nacional Criança Alfabetizada – 2023.
Confira os destaques feitos por ela nesses documentos e como, em alguns momentos, eles diferem entre si e, em outros, se complementam e acrescentam pontos importantes, na apresentação disponibilizada por ela. Já para conferir seus comentários sobre cada um deles, assista ao vídeo, de 00:17:30 a 00:42:59.
Patrícia dedica especial atenção ao Compromisso Nacional Criança Alfabetizada – 2023, que é o mais recente documento que temos dentro da temática.
Compromisso Nacional Criança Alfabetizada – 2023
Pesquisa Alfabetiza Brasil Conjunto de habilidades para o perfil de aprendizagem da leitura e da escrita esperado ao fim do segundo ano do Ensino Fundamental corresponde a 743 pontos na escala Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb). As crianças que alcançam esse patamar são capazes de realizar leitura e processos básicos de interpretação de texto, com base na articulação entre texto verbal e não verbal, como em tirinhas e histórias em quadrinhos. Além disso, são capazes de escrever (ainda com desvios ortográficos) textos que remetem a situações da vida cotidiana como um convite ou um lembrete.
“Esse conceito que o novo documento traz vai repercutir em toda a cadeia que parte daí. O material que é produzido para essa etapa da alfabetização precisa considerar essa definição e a formação dos professores e a avaliação também. Mas claro que esse marco também tem alertas. Não significa que o primeiro e o segundo ano de escolaridade das crianças vão se resumir ao sistema de escrita alfabético. E se a gente for olhar para estratégias, conteúdos e detalhar isso melhor, precisa ter muito mais, incluindo a construção de que as crianças, desde a Educação Infantil e até antes, precisam estar imersas em práticas de leitura e de oralidade em vários tipos de gêneros, acreditando na capacidade delas de que conseguem interagir desde muito pequeninas com essa práticas”, acrescenta Patrícia.
Quer saber mais sobre o tema? Conheça o curso “Alfabetização: superando mitos”. Totalmente gratuito, ele é voltado para profissionais das áreas da educação e da psicopedagogia, dentre outras, e interessadas/os em geral, como familiares de crianças em fase de alfabetização.
O que precisamos considerar no projeto de alfabetização de uma rede?
“Se a gente quer que as crianças cheguem a esse patamar de alfabetização posto, é preciso pensar como a gente organiza os projetos das redes públicas de ensino e como a avaliação vai conversar com esses marcos. E uma coisa mais central e que é importante de entender é que um projeto como esse inclui uma decisão política. E aqui a gente tem muitas polêmicas e muitas visões polarizadas no país. Mas se, realmente, tudo isso for levado a sério, a gente tem que buscar a coerência e a coragem para as crianças de fato terem acesso a essa proficiência e essa autonomia de leitura e escrita”, destaca Patrícia.
Ela explica que precisamos considerar 4 pontos para esse projeto de alfabetização da rede: concepções; tempos, espaços e acervo de livros e demais materiais; acompanhamento das aprendizagens e avaliação; e formação continuada.
Concepções
A primeira concepção que precisa ser considerada é a conceituação do que é estar alfabetizada/o, mas há outras que também são centrais para orientar o processo de alfabetização.
- Criança
Que criança é essa? Ela é uma criança potente e ativa que pensa e que já tem muitos conhecimentos que traz na sua (curta) história de vida? - Professora/or
Que concepção eu tenho dessa/e profissional? Uma/um docente protagonista ou que atua só como meio de uma prática/concepção pensada por outra pessoa? - Gestoras/es e Escola
Quem é essa pessoa, qual o seu papel? Qual a função dessa escola? Como ela está estruturada?
Tempos, espaços e acervo de livros e demais materiais
Para pensar nessas questões da ordem da organização e dos recursos materiais, é preciso ter uma visão para esse percurso de 400 dias letivos, que se somam entre o primeiro e o segundo ano escolar dessas crianças do Ensino Fundamental, e o que eles podem oferecer de situações e oportunidades para a alfabetização, além de outras tantas questões que estão colocadas como expectativas curriculares para elas nesse momento. Para isso, ela sugere uma reflexão sobre:
As atividades que são realizadas nas escolas
Se queremos que as crianças sejam capazes de realizar leitura e interpretação de textos; escrever textos que remetem a situações da vida cotidiana como um convite ou um lembrete, precisamos pensar:
- Que situações devemos desenvolver na rotina?
- Que materiais de leitura devemos ofertar?
- Que intervenções as/os professoras/es precisam realizar?
- Que agrupamentos precisam ser organizados?
- Qual a rotina de atividades dessas crianças?
Em relação à organização dos espaços e materiais, uma estratégia muito efetiva pode ser a Biblioteca de classe (saiba mais sobre essa prática no vídeo “Biblioteca de classe como estratégia na formação leitora, da nossa antiga série “Diálogos com a comunidade”).
Biblioteca de classe:
- O que espero que minha turma aprenda com a leitura compartilhada desse livro? (intencionalidade);
- Esse livro pode oferecer uma experiência distinta de leitura literária? (ensinar a ler por meio de distintas experiências literárias);
- Quais elementos literários esse livro oferece à/ao leitora/or? (conteúdo e forma desafiam ela/ele);
- Quais experiências estéticas, de leitura e de vida minha turma já possui e precisam ser ampliadas? (o que pode ajudar a definir o perfil de uma/um leitora/or é a competência leitora).
Acompanhamento das aprendizagens e a avaliação
É essencial também estabelecer um processo de monitoramento das aprendizagens de cada estudante a fim de ajustar as propostas para favorecer seu avanço. Patrícia coloca as seguintes questões para nortear esse acompanhamento:
- Para que avaliar?
- Em que momentos?
- Quem envolver?
- O que fazer com o que se observa, se avalia?
No diagrama abaixo, produzido pela equipe da Roda Educativa, é possível visualizar essa ideia de um processo avaliativo que precisa ser formativo e contínuo, retroalimentando o planejamento e a intervenção das/os professoras/es e tendo nas pontas do processo a avaliação diagnóstica e a avaliação cumulativa ou somativa.
Ao comentar esse tópico, Patrícia destaca que a avaliação pode ser uma aliada da política pública. Confira os pontos que ela identifica como essenciais para que isso se efetive:
- A avaliação das aprendizagens é processual e contínua;
- É essencial que se destaquem os conhecimentos adquiridos, considerando os pontos de partida de cada estudante, e não apenas os que faltam, pois é isso que vai dar as pistas necessárias à continuidade do ensino;
- O conteúdo a ser avaliado precisa ser coerente com o processo de alfabetização dentro de seus contextos e com as oportunidades oferecidas para que todos os estudantes avancem;
- As redes de ensino, bem como as escolas, precisam reorganizar seus planos e suas políticas educacionais, em especial a de formação a partir das avaliações internas e externas, investindo esforços em analisarem também o equilíbrio necessário entre o tempo e os recursos dedicados para a avaliação e as condições oferecidas para o ensino e para a aprendizagem (evitando a sobreposição de avaliações nacionais, estaduais e, às vezes, dos próprios municípios em detrimento de investimentos endereçados à formação continuada, planejamento, etc.).
Formação continuada
“Esse último tópico é central para retroalimentar todos os outros e a gente tem ainda questões de alta rotatividade nas/os professoras/res alfabetizadoras/es. Se estabelece uma política e daqui a pouco esse grupo de profissionais é trocado. Então, temos que estar articuladas/os para que essas pessoas novas que chegam tenham também a oportunidade de dar continuidade ao projeto. Por isso, a formação continuada é muito relevante para que todos os outros pontos funcionem”, destaca Patrícia.
Confira o que precisa ser assegurado nesse processo:
- Formação sistêmica: professoras/es, coordenadoras/es pedagógicas/os e diretoras/es como autores de sua prática;
- Garantia dos tempos e condições necessárias para planejamento, registros, reflexões, estudos e trocas entre as/os professoras/es, e ações formativas que favoreçam a construção de conhecimento sobre as situações didáticas.
“A gente tem estabelecido por lei que 1/3 da carga do professor precisa ser dedicado a horários de trabalho individuais e coletivos e ainda encontramos fragilidades no uso desse tempo Então é preciso tanto olhar para a formação continuada para entendê-la não só como a recuperação necessária das fragilidades dos professores em relação à sua formação inicial ou até mesmo a sua própria formação de conhecimentos básicos de leitura de escrita de matemática e de outras áreas, mas também uma formação sistêmica que possa envolver todas as pessoas e que traga esse olhar reflexivo. O que eu estou fazendo está coerente com o resultado que eu quero? Está coerente com a avaliação que eu faço? Como costurar a rotina do dia a dia com todas essas necessidades para focar na didática da alfabetização e conseguir, a cada dia, ser mais proveitoso aquilo que ofereço para as crianças na escola? Isso tudo para garantir os tempos e espaços, as condições, os planejamentos e as ações formativas que precisam acontecer para suportar todo esse processo complexo que é a alfabetização”, finaliza ela.